O STF e a extensão da imunidade tributária recíproca às estatais

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I. A decisão do STF no RE 600.867 (Sabesp vs. Ubatuba). Os efeitos e a coerência em relação aos julgados de 2017
Em boa hora o Supremo Tribunal Federal afastou a imunidade tributária recíproca das empresas estatais que distribuem lucros a terceiros, negando provimento ao Recurso Extraordinário da Sabesp (RE 600.867), com Repercussão Geral, por 9 votos a 2.
O julgado cerra fileiras com os Acórdãos proferidos em 2017 nos RE 594015 e 601720, nos quais a Corte Suprema reconheceu o abuso da tese da imunidade tributária, para afastá-la nas situações em que particulares os beneficiários finais. No recente RE 600.867, também atuamos junto ao STF em defesa do interesse dos municípios, desta vez em nome da municipalidade de Ubatuba, garantindo a incidência do IPTU sobre imóveis da estatal paulista.
O relator ministro Joaquim Barbosa e outros oito ministros assentaram entendimento resumido no seguinte parágrafo do voto condutor: “Assim, sempre que um ente federado criar uma instrumentalidade estatal dotada de capacidade contributiva, capaz de acumular e de distribuir lucros, de contratar pelo regime geral das leis trabalhistas, faltarão as condições propícias ao desvirtuamento do respeito federativo à autonomia local, motivação primeira de todas as normas e precedentes relacionados à imunidade tributária recíproca”.
Divergiram os ministros Roberto Barroso e Carmen Lúcia, sob o argumento de que a natureza substancial do serviço público deveria prevalecer, para afastar a incidência do imposto municipal, mesmo que a atividade rendesse lucros ou dividendos a particulares, inclusive estrangeiros.
Nos últimos anos, o STF havia ampliado vertiginosamente a imunidade tributária recíproca, agasalhando atividades estatais remuneradas por preços, tarifas ou contraprestações – relativizando a dicção do §3º do artigo 150 da Constituição. A extensão chegou a encampar no campo imunitário atividades realizadas em aberta concorrência com o mercado privado.
Neste ponto, o julgamento do RE 601.392 (Correios vs. município de Curitiba) fora emblemático. Em votação apertada (6 votos contra 5), o STF considerou desonerados de impostos todos os bens, rendas e serviços da estatal federal, abrangendo, entre outros, os de transporte e guarda de bens, sob protestos de empresas privadas que competem nestes segmentos.
Naquela ocasião, a maioria vencedora no STF justificou a desoneração das estatais sob a alegação de que a renda auferida com elas serviria de subsídio cruzado[1], para financiar atividades deficitárias da estatal que, por isso, não interessariam ao setor privado.
Contudo, no caso da Sabesp (e nos julgados de 2017) nossa Suprema Corte começou a perceber o desatino dessa orientação jurisprudencial, reconhecendo que não poderia permitir que particulares, inclusive estrangeiros[2], fossem destinatários indiretos de benefícios tributários concedidos pelo Estado brasileiro, favorecendo ganhos bilionários com as ações e ADRs disponíveis em bolsa de valores[3], em detrimento das fontes de financiamento das unidades federadas pátrias, sobretudo dos municípios.
Aliás, os incisos II e III do artigo 14 do Código Tributário Nacional já vedam o gozo de imunidade tributária sempre que houver distribuição de resultados a terceiros ou na sua aplicação fora do território nacional.
Portanto, o julgado parte de fundamentos de igualdade, mas reflete a aplicação do princípio da capacidade contributiva, representando um avanço na recuperação do sentido do federalismo fiscal brasileiro[4] e, sobretudo, na compreensão das finalidades da imunidade tributária recíproca, que deve se voltar à proteção das instrumentalidades estatais que sejam manifestações próprias da soberania.
Aliás, neste tema, as referências brasileiras ainda gravitam em torno do julgamento McCullouch vs Maryland, realizado pela Suprema Corte dos EUA em 1819, apesar da jurisprudência daquele país ter evoluído em quatro etapas distintas ao longo dos últimos duzentos anos, para chegar a uma perspectiva restritiva da imunidade tributária recíproca.
Como já alertava o saudoso mestre Ricardo Lobo Torres[5], a última linha de entendimento da US Supreme Court limitou a imunidade tributária recíproca aos serviços típicos de soberania, deixando que os demais se resolvessem à luz do princípio da não-discriminação[6].
No Brasil, as atividades estatais encampadas pela imunidade tributária recíproca delimitada por este critério seriam apenas as que são financiadas por impostos ou taxas, mas nunca por preços, tarifas ou contraprestações privadas – e muito menos os que geram lucros ou resultados financeiros a particulares.
II. Prognóstico sobre a evolução da jurisprudência do STF sobre o tema da imunidade tributária recíproca. A recuperação do sentido do federalismo fiscal e da força normativa da segunda parte §3º do artigo 150, em sua sistematicidade com os artigos do “ordem econômica” constitucional
O aresto oriundo do RE 600.867 tem o condão de reforçar a discussão na Suprema Corte brasileira sobre os objetivos e o alcance da imunidade tributária recíproca, (r)estabelecendo a melhor interpretação teleológica, sistemática e principiológica do §3º do artigo 150 da Carta de 1988.
O julgado também favorece a recomposição das bases econômicas destinadas pela Constituição ao campo impositivo das unidades federadas brasileiras, debilitadas pela proliferação de atividades estatais de caráter econômico nos três planos estatais que não pagam impostos.
Na prática, a desoneração dos serviços públicos remunerados por preços ou tarifas aliada ao gigantismo estatal nacional priva os municípios, os estados e a própria União de receitas que deveriam financiar serviços essenciais, subvertendo o próprio federalismo fiscal.
E mesmo que se diga que há serviços públicos essenciais prestados (indevidamente) por meio de empresas que adotam acidentalmente formas de direito privado (sociedades de economia mista, empresas públicas ou meras controladas”), estes podem e devem adotar estruturas e instrumentos jurídicos típicos do direito público, como as de autarquias e fundações.
Aliás, o artigo 26 da Emenda Constitucional 19/98 não trouxe uma exigência bizantina para o ordenamento administrativo brasileiro, mas um requisito importante para a transparência e a sindicabilidade dos atos destas estatais, que somente assim passam a se submeter integralmente ao regime de direito público e, principalmente, aos controles financeiros e orçamentários ordinários de receitas e despesas[7].
Calha lembrar que a lei orçamentária anual só contempla os “investimentos” e os “lucros” (potenciais) das estatais, enquanto que a decisão sobre a gestão do seu caixa fica restrita aos recintos de suas diretorias, muitas vezes caixas-pretas difíceis de decodificar.
Assim, além de minar as bases de tributação dos entes federados, a extensão[8] da imunidade para entidades da Administração Indireta que cobram preços, tarifas e contraprestação (segunda parte do §3º do art. 150 c/c art. 175 da CF88) ou que têm atividades lucrativas e distribuem resultados a terceiros (ainda que por meio de veículos financeiros indiretos, como v.g. debêntures), especialmente estrangeiros (primeira parte do §3º do art. 150 c/c § art. 173), arrosta ainda um outro princípio constitucional: a não-vinculação da receita de impostos.
Ao considerar que a manutenção de resultado financeiro de atividade estatal econômica (que revela capacidade contributiva) não deva se sujeitar à imposição tributária dos entes competentes (v.g. IPRJ, ICMS ou ISSQN), a jurisprudência acabou afetando tais receitas dos impostos à própria atividade desonerada.
Isto é, ao impedir que sejam cobrados impostos, o STF assegura que os valores correspondentes aos mesmos permaneçam no caixa das respectivas estatais, destinando-se às atividades escolhidas pela própria empresa, e não aos orçamentos públicos para os quais deveriam estar atrelados como receitas derivadas.
É verdade que, apesar de ser considerada pedra fundamental da democracia moderna, a lei orçamentária vem sendo desmontada em sua unicidade e universalidade por meio de seguidas vinculações prévias de recursos, em favor de certas despesas escolhidas por leis especiais ou pelos governos de ocasião.
Isto se dá pela vinculação de percentuais de arrecadações de impostos a certos segmentos (educação e saúde, como no nosso caso); pela criação de fundos de arrecadação de determinadas multas e receitas originárias; ou, ainda, pelo avanço da cobrança de impostos com destinação específica – travestidos na figura das “contribuições” no Brasil e mundo afora.
Entretanto, nada justifica enfraquecer ainda mais o orçamento público, retirando dele receitas decorrentes de atividades econômicas que deveriam ser arrecadadas pelos entes federados e gastas de acordo com as prioridades legitimamente deliberadas no processo legislativo orçamentário – e não nos gabinetes fechados das estatais.
Diante desse quadro, resta evidente que as consequências deletérias da “extensão da extensão” da imunidade tributária recíproca em favor das entidades da Administração Indireta deflagram problemas no plano da transparência, controle e destinação de receitas públicas, mas, sobretudo, violam as finalidades do federalismo fiscal cooperativo e o sentido da imunidade tributária recíproca definidos pela Constituição de 1988.
Caso se decida buscar inspiração no Direito Comparado, que ela venha da última posição firmada pela Suprema Corte dos EUA sobre o tema. Afinal, desde 1968 a US Supreme Court só reconhece a imunidade tributária de serviços públicos que são manifestações típicas da soberania estatal[9], afastando a desoneração de atividades econômicas que revelam capacidade contributiva e são fonte de receitas necessárias para financiar os orçamentos públicos de municípios, condados, estados e do governo federal daquele país [10].
Chegou a hora de reconhecer o que Alcides Jorge Costa ressaltava, com sua memorável percuciência, durante os debates da Constituinte de 1987-8811: “A extensão das imunidades recíprocas está a merecer uma revisão, uma vez que a presença do Poder Público, sobretudo da União, no domínio econômico tem crescido muito, e apenas a exclusão das empresas públicas que exercem atividades não-monopolizadas parece insuficiente para evitar certos efeitos perversos da imunidade recíproca”.
E a Constituição de 1988 não poderia ter sido mais clara ao coordenar as duas locuções do §3º do artigo 150 com os dois tipos de regimes de atuação estatal na Ordem Econômica constitucional, previstas no seu Título VI.
A primeira parte do dispositivo afasta a imunidade tributária em relação ao patrimônio, renda ou serviços “relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados”; no que remete à previsão do artigo 173, que trata das atividades econômicas em ambiente de mercado. A segunda parte do parágrafo 3º do artigo 150 refere-se às atividades estatais remuneradas por “preço, tarifa ou qualquer espécie de contraprestação paga pelo usuário”, claramente referente às atividades econômicas previstas no artigo 175.
III. Conclusão
A Suprema Corte brasileira deu um passo importante no julgamento do RE 600.867, limitando a extensão da imunidade tributária recíproca das entidades da Administração Indireta. Contudo, o STF ainda terá pela frente a tarefa de recuperar a força normativa da segunda parte do referido §3º, respeitando não apenas a sua literalidade, mas também o sentido ontológico e finalístico do federalismo fiscal brasileiro.
A proteção das tarefas constitucionais cometidas às entidades federadas pela imunidade tributária recíproca não pode dar margem à erosão dos impostos como fontes do financiamento orçamentário nem muito menos permitir a dispersão de recursos públicos, deixando-os no caixa das estatais e fora do orçamento público, por força de desonerações tributárias.
Esta situação compromete a higidez da Federação e, em última análise, fragiliza as estruturas do próprio Estado Constitucional, assentadas na deliberação orçamentária e no controle financeiro de receitas e gastos públicos.
Fonte: JOTA