(Não) incidência do ICMS sobre demanda de potência contratada de energia elétrica

Tarifa cobrada a ser obrigatória e continuamente disponibilizada não pode sujeitar-se à incidência do imposto

TUSD - Eletrobras
Crédito: Agência Brasil
Não é de hoje que se discute a possibilidade de inclusão, na base de cálculo do ICMS incidente sobre a energia elétrica, dos valores relativos à demanda de potência contratada. Após ter sido objeto de diversas discussões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), agora foi a vez do Supremo Tribunal Federal (STF) se pronunciar sobre essa controvérsia.
Em sessão plenária virtual concluída no último dia 24 de abril, o STF fixou a seguinte tese no julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral nº 593.824/SC: a demanda de potência elétrica não é passível, por si só, de tributação via ICMS, porquanto somente integram a base de cálculo desse imposto os valores referentes àquelas operações em que haja efetivo consumo de energia elétrica pelo consumidor“.
Além da tese fixada, o acórdão relativo a esse julgamento, publicado em 19 de maio de 2020, traz em sua ementa a seguinte orientação:
(…) 2. À luz do atual ordenamento jurídico, constata-se que não integram a base de cálculo do ICMS incidente sobre a energia elétrica valores decorrentes de relação jurídica diversa do consumo de energia elétrica.
3. Não se depreende o consumo de energia elétrica somente pela disponibilização de demanda de potência ativa. Na espécie, há clara distinção entre a política tarifária do setor elétrico e a delimitação da regra-matriz do ICMS.
4. Na ótica constitucional, o ICMS deve ser calculado sobre o preço da operação final entre fornecedor e consumidor, não integrando a base de cálculo eventual montante relativo à (sic) negócio jurídico consistente na mera disponibilização de demanda de potência não utilizada. (…) – (grifamos)
Uma análise superficial e literal da ementa desse acórdão – principalmente dos trechos destacados – levaria o leitor mais desatento a concluir que, no entendimento do STF, o valor pago pelo consumidor de energia elétrica a título de demanda de potência contratada não pode ser incluído na base de cálculo do ICMS por se tratar de negócio jurídico desvinculado do consumo de energia elétrica.
Seria, portanto, uma decisão acertada, já que, como sabemos, o fato jurídico tributário que faz nascer a obrigação de pagar o ICMS em relação à “circulação” de energia elétrica é justamente (e apenas) o seu consumo.
No entanto, da análise das razões de decidir do voto do relator, ministro Edson Fachin, nota-se que o STF baseou sua decisão no entendimento firmado pela Primeira Seção do STJ no bojo do REsp 960.476, de relatoria do então ministro Teori Albino Zavascki, que, posteriormente, resultou na edição da Súmula nº 391: o ICMS incide sobre o valor da tarifa de energia elétrica correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada.
Ao assim fazê-lo, o STF incorreu no mesmo equívoco conceitual cometido pelo STJ ao definir que apenas a demanda de potência não utilizada não integraria a base de cálculo do ICMS, o que permite concluir que a demanda utilizada integraria.
É bem verdade que essa decisão já foi objeto de Embargos de Declaração, motivo pelo qual o STF ainda terá oportunidade de esclarecer qual é o significado e alcance do termo “demanda de potência não utilizada empregado na tese definida nos autos do RE nº 593.824/SC.
De qualquer modo, entendemos importante fixar, desde já, que o equívoco cometido tanto pelo STF como pelo STJ reside no fato de que demanda de potência não pode ser consumida.
A demanda de potência diz respeito à capacidade do sistema elétrico de suportar, em um determinado momento, o tráfego de quantidade considerável de energia elétrica. Assim, tem a ver com quão robustos são os cabos e equipamentos da rede elétrica no local de consumo para que o fornecimento de energia possa atender à necessidade do usuário com a segurança esperada.
Para entender melhor como funciona a demanda de potência, basta imaginar a seguinte situação: uma determinada indústria possui duas máquinas, sendo uma com potência de 10 quilowatts (kW) e outra de 5 kW. Logo, para que as duas máquinas possam, de modo simultâneo, funcionar corretamente, a potência necessária no local de consumo será de 15 kW.
Caso essas duas máquinas permaneçam em funcionamento por uma hora ininterrupta em um determinado dia, o consumo de energia nesse período será de 15 quilowatts-hora (kWh), tendo sido atingida a demanda potência de 15 kW.
Em um segundo dia, apenas a máquina de 5 kW tenha sido utilizada, mas por um período de quatro horas ininterruptas. Nessa segunda hipótese, a potência atingida será de apenas 5kW, mas o consumo de energia terá sido de 20 kWh.
A medição da demanda de potência de um consumidor não tem qualquer relação com o consumo de energia propriamente dito. Tanto é que o custo para instalação e manutenção da infraestrutura necessária de determinada demanda de potência do consumidor é cobrado de forma separada do valor da energia elétrica consumida, independentemente de a potência máxima ter sido atingida ou não no período de faturamento.
Nesse contexto, potência, como medida de grandeza física que é, não pode ser consumida, mas apenas atingida. O que se consume é a energia.
Portanto, para que o entendimento firmado pelo STF no julgamento do leading case acima faça algum sentido, deverá ser esclarecido o significado e alcance do termo “demanda de potência não utilizada. Queremos acreditar que o emprego desse termo tenha tido por objetivo identificar a situação na qual a demanda de potência não é atingida em determinado mês.
Entretanto, ainda que assim seja, não parece correto esse entendimento, pois, como já mencionamos neste artigo, o fato jurídico tributário que faz nascer a obrigação de pagar o ICMS é a circulação da energia, qualificada pelo seu consumo. Logo, a tarifa cobrada para remunerar a demanda de potência ativa a ser obrigatória e continuamente disponibilizada pela distribuidora não pode sujeitar-se à incidência do imposto.
Caso não seja esclarecido esse ponto, o efeito dessa decisão será completamente o oposto do esperado de um julgamento com a finalidade de fixação de tese objetiva apta a gerar orientação jurisprudencial a todo o sistema judicial, como é próprio da sistemática da repercussão geral, como disse o ministro Edson Fachin em seu voto. Isto é, hão de se multiplicar questionamentos e controvérsias a respeito da (não) inclusão da demanda de potência contratada na base de cálculo do ICMS.
Fonte: Jota