Alocação de risco na importação e interposição fraudulenta de terceiros

Na coluna de hoje, abordaremos a questão da alocação de risco dentro das diversas modalidades de importação previstas no Direito brasileiro. Entretanto, não buscaremos apenas identificar o padrão de repartição desse risco entre os partícipes, segregando-o entre os de natureza contratual e comercial, mas sim analisar a forma como ele tem sido utilizado como relevante indício para a tipificação de interposição fraudulenta de terceiros, na modalidade comprovada, com base no artigo 23, V do Decreto-lei n° 1.455/76 [1].


A infração se verifica nos casos de ocultação, mediante fraude ou simulação do real comprador, vendedor ou responsável pela operação (de importação). A operação de importação, por sua vez, pode se dar de diversas maneiras, quais sejam 1) importação por conta própria; 2) importação por conta e ordem de terceiro; e 3) importação por encomenda.


Em apertada síntese, na importação por conta própria, o importador adquire os bens do exterior por sua conta, habilitando-se no Siscomex, internalizando a mercadoria e vendendo-a no mercado nacional. Nas demais espécies há um outro sujeito na operação, além do exportador e o importador: 1) na importação por conta e ordem, a pessoa jurídica importadora é contratada para promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria estrangeira, adquirida no exterior pelo adquirente final (artigo 2º da IN SRF n° 1.861/2018); e 2) na importação por encomenda, a pessoa jurídica importadora é contratada para promover, em seu nome e com recursos próprios, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria estrangeira por ela adquirida no exterior, para revenda a encomendante predeterminado (artigo 3º da IN SRF n° 1.861/2018).


Na importação por conta própria, o próprio adquirente das mercadorias é responsável por todos os atos necessários para a internalização do bem e para a saída dos recursos do Brasil, figurando como importador em todos os documentos necessários, e respondendo diretamente por todos os procedimentos e ônus decorrentes dessa operação. Há um contrato mercantil de compra e venda internacional [2], entre o importador e o exportador, no qual a alocação de risco poderá se dar de maneiras diversas, a depender das cláusulas contratuais adotadas — os chamados International Commercial Terms — Incoterms.


A depender do tipo de contrato, se FOB, CIF, DDP, CFR etc., a alocação de riscos entre comprador e vendedor mudará. Todavia, além da alocação desse risco contratual, há também o risco comercial do adquirente, vez que entregue a mercadoria ao importador, este se responsabiliza integralmente pela sua revenda no mercado nacional.


Na importação por conta e ordem, o importador é contratado para promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria estrangeira adquirida no exterior por outra pessoa jurídica (adquirente). Assim, o adquirente nacional irá realizar com o exportador estrangeiro contrato de compra e venda, arcando com o custo dessa aquisição, e restando o risco contratual da operação repartido entre eles da mesma forma que na importação por conta própria, a depender do Incoterm adotado.


Por outro lado, o adquirente contrata o importador para lhe prestar o serviço de promoção do despacho aduaneiro de importação de mercadoria estrangeira, e sua consequente liberação no estabelecimento alfandegário. Neste caso, o importador não tem qualquer relação com a operação de compra e venda internacional: não emprega recursos [3], não adquire bens, não se responsabiliza por sua revenda, enfim, não assume qualquer risco contratual ou comercial na importação — este último risco é integralmente alocado no adquirente, que vai revender esse bem no mercado nacional, auferindo os lucros e prejuízos advindos dessa operação.


Na importação por encomenda, haverá dois negócios jurídicos coligados: 1) o primeiro, um contrato de encomenda de produto importado, firmado entre o encomendante e o importador; e 2) contrato de compra e venda internacional entre o importador e o exportador. A revenda do bem importado para o encomendante não é um terceiro contrato, mas sim a execução do primeiro, que pressupõe o compromisso de adquirir a mercadoria importada.


Em relação à compra e venda internacional, ele se assemelha em tudo ao contrato de importação por conta própria, com o importador assumindo os riscos contratuais: negocia com o fornecedor [4], acerta os Incoterms da operação e arca com os custos de aquisição e internalização. Apesar disso, se distingue em razão do importador não assumir qualquer risco comercial na revenda: o contrato de encomenda altera profundamente a alocação de riscos comerciais da operação, transferindo-os integralmente para o encomendante, que se compromete a adquirir a mercadoria.


É importante observar a repartição de riscos nas operações de importação por encomenda não é semelhante às operações consideradas individualmente. Trata-se de uma coligação de contratos "que, por força de disposição legal, da natureza acessória de um deles ou do conteúdo contratual, encontram-se em relação de dependência unilateral ou recíproca" [5] — sem essa relação entre os negócios jurídicos, desnatura-se a própria modalidade de importação.


Considerando que a preponderância dessa coligação de contratos é o atendimento à demanda do encomendante, é normal e usual que o próprio risco contratual do importador seja transferido para o destinatário final da mercadoria (força motriz de toda a operação), por meio de cláusulas contratuais, contratos acessórios de seguro etc. Isso fica evidente da leitura da IN nº 1.861/2018, que estabelece a possibilidade de prestação de garantia do encomendante ao importador, transferindo o risco contratual deste para aquele, sem desnaturar a modalidade da operação realizada.


Em suma, na importação por encomenda, a alocação do risco vai depender da análise dos contratos coligados. É possível que o risco contratual fique com o importador e o risco comercial com o encomendante, mas é plenamente compatível — e até recomendável, sob a perspectiva do importador — que tanto o risco comercial quanto o contratual, sejam postos em quem deu início a todo o processo de aquisição da mercadoria no exterior, i.e., o encomendante, o que se materializa por meio de instrumentos próprios (por exemplo, prestação de garantia).


Feitos esses esclarecimentos, cabe analisar a forma como a alocação de risco tem sido considerada no julgamento de casos de interposição fraudulenta comprovada.


É bastante ilustrativo, o acórdão Carf nº 3302-006.329 [6], que aduz que na verificação da ocorrência de importação por encomenda, "a regra de ouro é identificar se o importador correu risco quanto à revenda do produto importado no mercado interno", e que a tomada de risco na revenda é uma característica típica apenas na importação por conta própria, pois nas outras duas modalidades já existem "comprador certo" (em rigor, para a importação por conta e ordem, sequer deveria se falar em "comprador", pois este adquiriu o produto diretamente do exportador, não do importador).


Na mesma linha, o acórdão nº 3402-004.263 afastou a acusação de interposição fraudulenta [7], sob o argumento de que parte das mercadorias vendidas pelo importador ao suposto encomendante foram devolvidas e não foram pagas, por estarem em uma qualidade inferior à esperada pelo comprador, o que evidencia a existência de risco comercial do importador. Também, o acórdão nº 3201-002.579 afastou a imputada infração em razão da ausência de qualquer garantia ou elemento negocial que minimizasse o risco comercial do importador na revenda da mercadoria [8], evidenciando uma operação materialmente enquadrada como importação por conta própria.


No acórdão nº 3201-005.574 concluiu-se que a importação seria por conta própria [9], afastando a acusação de interposição fraudulenta, ao observarem que a importadora assumira os riscos relacionados à qualidade do produto, os gastos de embarque da mercadoria, eventuais custos de demurrage, e até mesmo de perda da carga — situação em que, claramente, evidencia se tratar de importação por conta própria.


Por outro lado, o voto vencedor no acórdão nº 3301-002.651 [10], apesar de aderir à premissa do risco como critério determinante da modalidade de importação realizada, conclui que alguns indícios, como a antecipação da venda ou de recursos podem servir para indicar que o risco teria sido alocado em terceiro, e não no importador, servindo para caracterizar a interposição fraudulenta.


Esse argumento da antecipação da venda, isto é, a venda da mercadoria antes da chegada do bem no país, tem sido considerado em algumas decisões como elemento que supostamente alocaria o risco comercial em terceiro. Não nos parece que seja o caso: uma coisa é ter comprador determinado antes de negociar com o exportador, outra é buscar um comprador nacional após o fechamento de contrato com o exportador — no primeiro caso, há uma situação de encomendante pré-determinado, no segundo, há uma otimização de processos comerciais — inclusive para fins de redução de custos de logística e no entreposto aduaneiro —, para vender um ativo que adquiriu, mas que não está em sua posse ainda.


Esse ponto foi bem percebido no acórdão nº 3402-008.622 [11], no qual se afirmou que "a tomada de risco é determinante para se configurar a existência ou não de importação por terceiros, em especial na modalidade por encomenda". O voto vencedor, nesse caso, trouxe uma relevante ponderação, ao afirmar que na importação por conta própria se espera que o importador assuma o risco do negócio, mas não se pode exigir que o ele corra riscos excessivos, proscrevendo a tomada de precauções para uma rápida venda dos produtos, ou procurando clientes apenas após a chegada da mercadoria. A contratação da revenda nacional após o fechamento da transação internacional é absolutamente válido e não macula a alocação de risco típica da importação por conta própria.


Esse mesmo problema foi enfrentado no acórdão nº 3301-003.630 [12], que expõe a problemática em se relacionar a premissa do "estoque zero" à inexistência de risco do importador. Assim, pressupõe-se que, ao eliminar o armazenamento de mercadorias e, portanto, realizar o repasse imediato e direto das mercadorias a seus respectivos adquirentes, se anularia o risco do importador, de forma que a operação de compra e revenda estaria previamente acordada e, assim, anterior ao despacho de importação. A decisão, entretanto, rechaça essa assunção e observa que essa análise peca em desconsiderar que a falta de estoque se caracteriza como uma opção de prática de gestão, tal como na prática administrativa toyotista, denominada "just in time", que é baseada na premissa do estoque zero. Logo, a premissa da fiscalização não encontraria quaisquer amparos legais e infralegais, podendo a importação ser realizada dentro da previsibilidade da demanda, ou com negociação antes da chegada da mercadoria no país.


Como se vê, a forma como o risco contratual e comercial foi alocado entre as partes envolvidas na operação de comércio exterior tem sido uma constante na análise das operações com imputação de interposição fraudulenta comprovada, no âmbito do Carf. Os acórdãos analisados apontam que a concentração dos riscos comerciais no importador tem sido o principal elemento para afastar a imputação de ocultação de terceiro na operação. Por outro lado, a inexistência de risco para o importador (quando a operação foi declarada por conta própria) tem levado os colegiados a concluir pela existência de interposição fraudulenta.


Não obstante, a análise de alocação de riscos precisa ser feita com muita cautela, considerando-se as práticas de mercado e diversos modelos de gestão empresarial, para não que não se exija uma a alocação excessiva do risco no importador, como nos casos em que se relaciona, equivocadamente, a ausência de risco comercial à venda da mercadoria antes da chegada no país, mantendo um estoque zerado. Não há qualquer racionalidade econômica em se negociar o produto apenas após a sua entrega no porto de destino, ou nos armazéns da importadora.


Outro aspecto que pode induzir a erro nessa análise é a existência de cláusulas contratuais e negócios jurídicos adjetivos que aloquem o risco contratual do importador na figura do encomendante. Trata-se de prática compatível com a modalidade de importação, inclusive com respaldo da IN RFB nº 1.861/2018, e decorre da consideração coligada dos contratos envolvidos, como forma de resguardar o importador em uma operação que se dá no interesse e por provocação de terceiro, sem permitir, a partir disso, concluir se tratar de uma importação por conta e ordem de terceiros.


Em suma, é exame eminentemente substancialista, que implica um amplo exame funcional da transação, partindo dos termos contratuais, mas observando a forma como as partes se comportaram na operação, e de que forma e em que momento seus ativos foram envolvidos, como meio de identificar com precisão como a alocação de risco se dá entre eles, para que se faça um adequado confronto com os padrões das modalidades de transação.


[1] Artigo 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias: (...)


V - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.

[2] Não se ignora que o contrato internacional envolve, per si, uma série de contratos acessórios, como contrato de transporte, de seguro, de serviços portuários etc.

[3] Tanto assim é, que o artigo 27 da Lei nº 10.637/02 estabelece a presunção de operação por conta e ordem, quando realizada mediante utilização de recursos de terceiros.

[4] Ainda que o artigo 3º, §2º e 3º da IN nº 1861/2018 autorize que o encomendante participe das operações relativas à aquisição da mercadoria no exterior e realize o pagamento antecipado da obrigação, antes mesmo da efetivação da importação.

[5] MARINO, Francisco Paulo Crescenzo. Contratos Coligados no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p.99.

[6] Relator Cons. Jorge Lima Abud, j. 29/11/2018.

[7] Rel. Cons. Carlos Augusto Daniel Neto, j. 27/06/2017.

[8] Rel. Cons. Pedro Rinaldi, j. 21/02/2017.

[9] Rel. Cons. Paulo Roberto Duarte Moreira, j. 21/08/2019.

[10] Redator designado Cons. Andrade Canuto Natal, j. 19/03/2015.

[11] Rel. Cons. Silvio Rennan, j. 21/06/2021.

[12] Rel. Cons. Marcelo Costa D’Oliveira, j. 23/05/2017.


Fonte: Conjur