O ministro Paulo Guedes afirmou, há poucos dias, ter sido surpreendido por um meteoro vindo de outros Poderes, que estaria a ameaçar o orçamento. Ainda segundo sua declaração, seria preciso lançar um míssil para detê-lo. Referia-se à necessidade de a União honrar o pagamento de precatórios, cujo montante, para 2022, será superior ao de 2021. A diferença, para mais, seria o meteoro, a ser detido por uma emenda constitucional destinada a permitir seu pagamento em condições mais brandas e prazos mais elásticos. Para completar, afirmou que os compromissos relacionados ao bolsa família seriam comprometidos caso tal pagamento não fosse postergado. Uma moratória no pagamento de débitos reconhecidos judicialmente, portanto, seria condição para a manutenção do importante programa social.
Uma série de questões precisam ser esclarecidas para que o leitor menos familiarizado com a matéria perceba o quão equivocadas, e juridicamente inadmissíveis, são as palavras do ministro.
Vale pontuar que um precatório é uma ordem de pagamento emitida por um Tribunal, ao qual é vinculado um juízo no qual se processa um cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública. Depois de concluído a fase de conhecimento do processo, e transitada em julgado uma sentença que condena o ente público ao pagamento de uma quantia, inicia-se a etapa destinada a viabilizar seu cumprimento. E a pessoa jurídica de direito público condenada participou, necessariamente, de todas as etapas do processo.
Isso significa que não se trata, evidentemente, de uma "surpresa" a necessidade de honrá-lo. E mais: trata-se da única despesa a ser inserida no orçamento que não decorre de previsão, e em relação à qual não há liberdade quanto a incorrer nela ou não. Os agentes políticos e gestores públicos até podem ter espaço para decidir gastar mais em estradas, ou menos em segurança pública, mais em presídios, menos na compra de leite condensado ou em remédio para verminoses, e assim por diante. Mas não em relação ao pagamento de quantias em relação às quais a entidade que corporificam foi condenada judicialmente com trânsito em julgado.
O meteoro, portanto, não é figura apropriada aos precatórios, mas à pretensão de não os pagar, que ameaça a própria ideia de Estado de Direito. Aprende-se, nos primeiros semestres dos cursos de graduação em Direito, que o Estado é dito "de Direito" quando se submete às leis e às decisões judiciais que as aplicam, não sendo esse o caso quando um governante acredita ter a liberdade de decidir como e em que termos cumprir uma sentença contra a qual não cabem mais recursos. Trata-se de algo que nem por emenda se pode excepcionar, como o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de declarar por pelo menos duas vezes.
Sim, em 2000, por intermédio da Emenda Constitucional 30, os precatórios pendentes e os que viessem a ser devidos, relativamente a ações iniciadas até 1999, foram objeto de parcelamento em dez anos. Desse modo, aquele que esperou por décadas para que o Judiciário reconhecesse a necessidade de o Estado reparar uma ilegalidade praticada, teve de aguardar por mais dez anos — depois do encerramento do processo! — para receber, em frações anuais, aquilo que nunca deveria lhe ter sido subtraído. O STF declarou — mais de dez anos depois, infelizmente — a inconstitucionalidade de referida emenda (ADI 2356). Isso não inibiu o Poder Público de tentar novamente, desta feita com a EC 62/2009, a qual foi igualmente declarada inconstitucional (ADI 4.425). Parece claro, nesse contexto, que uma terceira tentativa será, no mínimo, uma evidência contundente de total desrespeito para com a ordem jurídica e os precedentes da Corte destinada a em última instância tutelá-la.
Mas o pior é que as referidas emendas 30/2000 e 62/2009 foram provocadas pela situação difícil de muitos Estados e Municípios, cuja dívida acumulada — por irresponsabilidade de gestões anteriores — impedia o cumprimento imediato das condenações judiciais. A União costumava honrar suas dívidas, ainda que só depois de esgotar todos os recursos cabíveis (e os não tão cabíveis) para evitá-lo. Agora, diante da perspectiva de ter de adimplir quantia superior à do ano anterior, coloca-se a necessidade de uma moratória e se usa um programa com forte apelo social como forma de chantagem, como se o respeito ao Estado de Direito precisasse custar o fim do referido programa, e não a redução de outras despesas talvez não tão nobres ou mesmo necessárias.
Um Estado que respeita as leis, e as decisões judiciais que as aplicam, talvez seja a mais importante conquista dos últimos séculos, pois não eram poucos os abusos e as mazelas que as pessoas sofriam pela falta de limites aos governantes. A História é rica em exemplos. Não há despesa mais importante no orçamento que a destinada a reparar ilegalidades definitivamente reconhecidas pelo Judiciário, portanto, até porque, se houvesse, e o Estado de maneira ilegal não a honrasse, não haveria quem o pudesse obrigar a isso: no final das contas, ainda que o Judiciário reconhecesse a imperiosidade da despesa, o pagamento, via precatório, seria considerado um mal a ser destruído com um míssil, que assim aniquila, a rigor, a própria ideia de Estado de Direito.
Como escreveu Schubert Machado em notável artigo sobre este mesmo tema (clique aqui), existe uma maneira muito simples de diminuir a quantidade de precatórios: basta que o Estado brasileiro cumpra a lei, pois "pagar os precatórios é a única consequência sofrida pelo Estado infrator". Por isso mesmo, arremata ele no citado artigo, a "franca preocupação com o valor dos precatórios deveria levar ao trato de suas causas e nunca à tentativa de evitar o pagamento". "Para livrar-se dos precatórios, basta ao Estado brasileiro cumprir a lei!"
Fonte: Conjur