O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise de como o serviço público é prestado à sociedade, porém não tem a intenção de esgotar o tema por este ser extenso e denso. Dentro de uma perspectiva de ordem prática surgem algumas perguntas: a Administração entrega o serviço de forma satisfatória para a população? Os princípios que norteiam a relação serviço público/sociedade são respeitados? O que pode ser feito para evitar a corrosão da máquina pública?
O
primeiro a definir o conceito de serviço público, mesmo que de forma abrangente
teria sido Rousseau na sua obra mais famosa, O Contrato Social, onde teria abordado
dois aspectos:
“De
um lado, trata-se de atividades destinadas ao serviço do público, isto é, ações
através das quais se assegura aos cidadãos a satisfação de uma necessidade
sentida coletivamente, sem que cada um tenha de atendê-la pessoalmente; de
outro, concebe-se como uma atividade estatal que sucede ao serviço do Rei,
porque se operou uma substituição na titularidade da soberania”.
Com
a maestria que lhe é peculiar, serviço público é definido por Maria Sylvia
Zanella di Pietro (2018, p. 177) “como toda atividade material que a lei
atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por seus delegados, com o
objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime
jurídico total ou parcialmente público”.
Dos
conceitos citados percebe-se que de um lado, o serviço público é atividade essencial
para proporcionar acesso a serviços eficientes para a população. Do outro,
mostra-se uma vinculação do Poder Público para a prestação destes serviços de
forma satisfatória aos administrados. Tal vinculação está prevista no art. 37,
caput, da Constituição Federal, onde estão explícitos alguns princípios, dentre
eles se vê o princípio da eficiência.
Se
de um lado o Estado tem o dever de prestar um serviço público satisfatório, por
outro temos a realidade do sucateamento da máquina pública com a falta de
investimentos, muitas vezes mínimos, nos mais variados órgãos e entidades da
estrutura administrativa. Além disso, podemos enumerar o déficit de servidores
para a prestação dos serviços, o que sobrecarrega aqueles que já fazem parte
dos quadros da Administração; a burocracia enraizada que engessa a fluidez dos
serviços e é responsável pela não prestação ou atraso na prestação dos
serviços; a corrupção que é o maior dos males a atingir o Poder Público, pois a
receita relativa à arrecadação do ente federativo toma uma destinação diferente
daquela para a qual estava prevista na lei orçamentária, havendo assim, a
precarização da prestação dos serviços à população.
Conforme
previsto no art. 175 da Carta Magna, a criação dos serviços públicos é feita por
lei e se refere a uma alternativa do ente estatal que assume a execução de
determinada atividade, podendo a sua gestão ocorrer diretamente, através da sua
cadeia de órgãos e entidades, ou indiretamente, através dos concessionários,
permissionários ou pessoas jurídicas criadas exclusivamente para essa
finalidade.
Ainda
no art. 175 da Carta Política, está claro que a prestação de serviços públicos,
cuja incumbência é do Poder Público, sempre será realizada por licitação. Esta
última parte tem ressalvas nos casos de dispensa e inexibilidade de licitação
previstas na Lei 8.666/93.
Um
dos fatores que mais prejudica a prestação satisfatória dos serviços públicos à
população é o desvio de verbas decorrentes de processos licitatórios de grandes
obras públicas ou demais serviços públicos que demandam alto valor, motivados,
principalmente, em decorrência de projetos mal realizados o que resulta em
postergação indefinida da conclusão das obras. Também se vê o descaminho dos
recursos públicos nas hipóteses de dispensa e inexibilidade de licitação.
Levando-se
em consideração o fato de que para gerar receita – receita esta que desce pelo
ralo do tratamento espúrio do dinheiro do contribuinte – o Estado precisa
tributar, aumentando ou criando novos tributos, para manter a máquina pública
operante, ainda assim, o serviço público não apresenta melhorias mínimas. Porém,
como é objeto do presente estudo, a ineficiência da prestação dos serviços
públicos muitas vezes não é somente consequência das recessões econômicas ou
fruto da incompetência administrativa – pois muitos gestores públicos utilizam
desse subterfúgio para se esquivar de responsabilidade – como anteriormente
dito, é também da corrupção desenfreada fazendo com que o Estado gere receitas
através de elevada tributação para cobrir o buraco deixado, enforcando, com
isso, o contribuinte. A respeito disso, o eminente jurista Kiyoshi Harada,
magistralmente se manifesta:
Se
há um dever de todo o cidadão de pagar impostos deverá haver, sem dúvida
alguma, o direito inalienável desse cidadão de ser atendido pelo
Estado-cobrador quanto às suas necessidades básicas em termos de serviços
públicos essenciais, pois, impostos são instituídos exatamente para a prestação
regular desses serviços públicos essenciais que conferem dignidade à pessoa
humana.
Assim,
fica claro que o Poder Público despeja toda a carga tributária no colo daquele
que mais necessita da prestação eficiente de serviços públicos para cobrir os
atos espúrios – ou no mínimo irresponsáveis – dos administradores públicos.
Como o Estado brasileiro tributa o consumo, ricos e pobres acabam pagando
igualmente a carga tributária como consumidores finais, sendo que proporcionalmente,
os pobres acabam pagando muito mais.
De
acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), o Brasil
é o país com uma carga tributária das mais elevadas do mundo (33,65% do PIB, em
2014), porém não consegue reverter (leia-se: não tem interesse em reverter)
essa cobrança demasiada de tributos em benefícios à população. Numa análise
realizada em 2017, o nosso país ficou em último lugar num total de 30 países
avaliados pelo citado instituto no tocante à reversão dos tributos em benefício
da sociedade.
Percebe-se
diante disso, que se os serviços não são prestados de forma adequada e
satisfatória à sociedade, consequentemente os princípios fundantes dos serviços
públicos são afrontados no cotidianamente pela Administração Pública.
Analisando
os princípios que regem o serviço público, percebemos que são afrontados na
prática como veremos a seguir:
- · Princípio da Universalidade: o presente
princípio correlaciona-se com a prestação dos serviços públicos de forma mais
ampla possível com o objetivo de beneficiar o maior número de pessoas. Mas
também significa que “os serviços devem ser prestados sem discriminação entre
os beneficiários que tenham as mesmas condições técnicas e jurídicas para
fruição” (CARVALHO, 2009). O que não é visto na prática ao visitarmos algum
hospital público ou quando vemos áreas de risco onde milhares de pessoas não têm
acesso à rede de esgoto ou água encanada;
- · Princípio da Continuidade do Serviço
Público: em resumo, significa dizer que o serviço público não pode parar, ou
seja, todo o projeto elaborado para a realização da obra pública, que
intrinsecamente inclui o real interesse público, não pode ficar inacabado, sob
o risco de o dinheiro do contribuinte ser desperdiçado, e o pior, a necessidade
da população tender a ser esquecida. Em contraposição a este princípio, o que
vemos é o descaso com tantas obras públicas paradas, pois, segundo o TCU, o
Brasil tem 14.403 obras classificadas como paradas, com um valor total de mais
de R$ 144.314.132.476,62 (mais de 144 bilhões de reais). Um absurdo em todos os
níveis. Enquanto isso a população míngua na mão de maus administradores;
- · Princípio da Igualdade dos Usuários:
segundo Di Pietro (2018, p. 182) “desde que a pessoa satisfaça as condições
legais, ela faz jus à prestação do serviço, sem qualquer distinção de caráter pessoal”.
É o que não vemos nas grandes cidades brasileiras, principalmente quanto à
distribuição de água, energia e esgoto. Enquanto usuários desses serviços, os residentes
de áreas de alto padrão, têm a distribuição de água, por exemplo, de forma
ininterrupta, enquanto os moradores de áreas carentes mínguam com a
distribuição reduzida ou intercalada em um ou dois dias da semana, como
acontece no Grande Rio de Janeiro e no Grande Recife, por exemplo;
- · Princípio da Eficiência: insculpido no
caput do art. 37 da Constituição Federal no Capítulo que trata da Administração
Pública, veio a lume através da Emenda Constitucional 19/1998, com a Reforma
Administrativa, refere-se, de forma resumida, ao fato de que a Administração
Pública tem o dever de prestar os melhores serviços possíveis com o gasto
mínimo de recursos públicos. Segundo conceituação magistral do eminente
administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello: “o princípio, é, pois, por
definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o
espírito e servindo de critério exata compreensão e inteligência delas,
exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo,
conferindo-lhes a tônica que lhe dá sentido harmônico”. Ou seja, o Princípio da
Eficiência deve servir de norte para toda a Administração Pública dos três
Entes Federativos. A Procuradora Federal Elaine Virgínia Castro, em artigo
publicado pelo site Conteúdo Jurídico deixa explícito que:
Tradicionalmente, a administração
pública se firmou na concepção de administração pública burocrática. O termo
‘burocrático’ atualmente possui um viés pejorativo. O significado deste termo
na administração pública passou a indicar a prestação de um serviço público que
não atende as expectativas do cidadão, demorado e com a utilização de
procedimentos pré-definidos, e muitas vezes, desnecessários.
Dessa didática
citação a nós fica exposto que os métodos utilizados pelo Poder Público na hora
de prestar os serviços para a população não são adequados, além dos motivos
citados, também pela burocracia que emperra as engrenagens da máquina pública.
Desta
forma, fica claro que para que a Administração possa prestar serviços melhores
e mais eficientes à população é preciso que as brechas dadas pela Lei de
Licitações, ainda em vigor, para o cometimento de atos de corrupção sejam
fechadas, impedindo que os gestores públicos possam agir ilegalmente, ou mesmo
tenham a possibilidade de desperdiçar verbas públicas. Outro ponto a se atentar
é a terrível burocracia arraigada nas entranhas dos procedimentos públicos, que
em efeito dominó, afeta toda cadeia produtiva e dificulta o trato dos
particulares com o Poder Púbico, atingindo diretamente a sociedade.
Em
relação às falhas da Lei de Licitações e Contratos, Maria Sylvia Zanella di
Pietro de forma brilhante nos ensina que:
“Essa
lei tem muitas falhas, além do excesso de formalismo que não existe em outros
países, é um procedimento que peca pela falta de transparência, sempre achei
errada a realização da fase de habilitação antes da fase de julgamento [...] É
praticamente inexistente a possibilidade de saneamento de falhas que às vezes
afasta um licitante por um erro bobo”.
Ela
ainda lista como outros problemas da citada lei a falta de previsão do procedimento
eletrônico, a preferência pelo critério do preço em detrimento da técnica e a
adoção de um regime jurídico idêntico em todas as entidades da Administração
Pública, inclusive para empresas estatais.
Um
dos principais nomes relativos à licitação, Marçal Justen Filho (2004, p. 109),
nos ensina que “lamentavelmente, no Brasil, as obras são licitadas, no mais das
vezes, sem a existência de um projeto executivo prévio, o que impossibilita a
avaliação da compatibilidade dos custos com o interesse coletivo”. É de
conhecimento de todos que os projetos para realização de obras ou prestação de
serviços públicos, quando há um projeto, têm uma gama enorme de vícios e que
esse mau planejamento reflete diretamente no orçamento final.
Ainda
dentro dos problemas relativos aos serviços públicos, temos a burocracia
estatal que prejudica o dinamismo na prestação até de serviços essenciais à
sociedade como os descritos no art. 10 e incisos da Lei 7.783/89, como por
exemplo, o abastecimento de água e tratamento de esgoto. Quando o cidadão
procura o Poder Público para a prestação de algum serviço, seja para reparo ou
para início de uma atividade, o indivíduo passa por uma verdadeira Via Crúcis, porque o seu pedido tem que
passar por inúmeros cartórios, receber inúmeros selos, protocolar inúmeros
documentos, requerer inúmeras certidões, ter documentos com inúmeras
assinaturas e códigos de controle infindáveis, etc. A título meramente
ilustrativo do que fora citado a respeito da burocracia nacional, para se abrir
uma empresa no Brasil, dura em média 79,5 dias, segundo o jornal Gazeta do Povo
em levantamento feito pelo Instituto Endeavor. Um verdadeiro absurdo, em países
como Estados Unidos e Austrália, o tempo médio é de um a quatro dias.
Obs.:
Este texto foi elaborado ainda sob a égide da antiga Lei de Licitações, devendo
o leitor traçar um paralelo com a Lei 14.133/21.
REFERÊNCIAS:
ROUSSEAU,
Jean-Jacques. O Contrato Social. 1ª
Ed. Vol. 631. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016;
DI PIETRO,
Maria Sylvia Zanella. Direito
Administrativo, 31ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018;
HARADA,
Kiyoshi. Poder Tributário. Jus Navigandi,
2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/77201/poder-tributario>. Acesso em: 20 nov. 2019;
CNPL:
Brasil é o país que proporciona o pior retorno em serviços públicos à
sociedade. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO “IBPT”. 2017.
Disponível em:
<https://ibpt.com.br/noticia/2595/CNPL-Brasil-e-o-Pais-que-proporciona-pior-retorno-em-servicos-publicos-a-sociedade>. Acesso em:
20 nov. 2019;
BRASIL.
Tribunal de Contas da União. Auditoria operacional sobre obras paralisadas.
Disponível em: <https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-sobre-obras-paralisadas.htm>. Acesso em: 20 nov. 2019;
BANDEIRA DE
MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.
31ª Ed. São Paulo: Malheiros. 2014;
RIOS,
Elaine Virginia Castro Cordeiro. Breves
Considerações sobre o Princípio da Eficiência. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 10 nov.
2019. Disponível em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42659/breves-consideracoes-sobre-o-principio-da-eficiencia>. Acesso em: 20 nov. 2019;
DI PIETRO,
Maria Sylvia Zanella. Professora Maria Sylvia aponta falhas na lei 8.666/93 e
afirma que licitações são portas abertas para a corrupção. Fórum, 2019. Disponível em: <https://www.editoraforum.com.br/noticias/item/professora-maria-sylvia-aponta-falhas-na-lei-8-66693-e-afirma-que-licitacoes-sao-portas-abertas-para-corrupcao/>. Acesso em: 20 nov. 2019;
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 10ª
Ed. São Paulo: Dialética, 2004;
ABERTURA de empresas no Brasil emperra nas
prefeituras e leva mais de 100 dias. Gazeta
do Povo, Curitiba, 18 jan. 2017. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/economia/empreender-pme/abertura-de-empresas-no-brasil-emperra-nas-prefeituras-e-leva-mais-de-100-dias-28aiwfb1nhqtt1l9snqms4gc3/>.
Acesso em: 21 nov. 2019.