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Introdução
A qualidade da prestação de serviços públicos é um dos temas mais relevantes para a sociedade e para o Direito Administrativo brasileiro. Este artigo tem como objetivo analisar a complexa relação entre o Estado e o cidadão, abordando os desafios enfrentados pela Administração Pública, a importância dos princípios que regem o serviço público e as possíveis soluções para aprimorar a eficiência da máquina pública.
1 – A Importância e os Dilemas do Serviço Público
A forma como o serviço público é prestado à sociedade no Brasil é motivo de constante debate e insatisfação. Em uma perspectiva prática, surgem perguntas cruciais: a Administração Pública entrega um serviço satisfatório? Os princípios do serviço público são de fato respeitados? O que pode ser feito para combater a corrosão e o sucateamento da máquina pública? Este artigo busca iniciar uma reflexão sobre esses pontos, sem esgotar a densidade do tema.
Rousseau, em sua obra "O Contrato Social", já abordava o conceito de serviço público sob dois aspectos: atividades destinadas ao serviço do público para satisfazer necessidades coletivas, e como uma atividade estatal que sucede ao serviço do Rei, com a substituição da titularidade da soberania.
A definição moderna de serviço público é magistralmente apresentada por Maria Sylvia Zanella di Pietro (2018, p. 177): "toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”.
Fica claro que o serviço público é uma atividade essencial para proporcionar acesso a serviços eficientes para a população, implicando uma vinculação do Poder Público para a prestação satisfatória desses serviços aos administrados. Essa vinculação está explicitada no art. 37, caput, da Constituição Federal, que elenca princípios fundamentais, como o da eficiência, o da legalidade, o da impessoalidade, o da moralidade e o da publicidade.
2 – DESAFIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: Sucateamento e Corrupção
Se, por um lado, o Estado possui o dever de prestar um serviço público satisfatório, por outro, depara-se com a dura realidade do sucateamento da máquina pública. A falta de investimentos, muitas vezes mínimos, em órgãos e entidades da estrutura administrativa é um problema crônico. Além disso, outros fatores contribuem para a ineficiência:
- Déficit de servidores: A falta de pessoal qualificado sobrecarrega os quadros existentes, comprometendo a capacidade de resposta da Administração.
- Burocracia enraizada: O excesso de formalidades e procedimentos engessa a fluidez dos serviços, gerando atrasos e, em alguns casos, a não prestação de serviços essenciais.
- Corrupção: Este é um dos maiores males que afligem o Poder Público. O desvio de receita, que deveria ser destinada à prestação de serviços públicos, para fins ilícitos, resulta diretamente na precarização do atendimento à população. A receita oriunda da tributação acaba tomando uma destinação diversa daquela prevista na lei orçamentária, prejudicando o cidadão.
A criação de serviços públicos é feita por lei, conforme previsto no art. 175 da Constituição Federal. O Estado pode assumir a execução de uma atividade diretamente, por meio de seus órgãos e entidades, ou indiretamente, através de concessionários, permissionários ou pessoas jurídicas criadas especificamente para essa finalidade, sempre sob regime jurídico público.
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É crucial destacar que a prestação de serviços públicos, cuja incumbência é do Poder Público, deve sempre ser realizada por licitação, conforme o art. 175 da Carta Política. Contudo, existem ressalvas nos casos de dispensa e inexigibilidade de licitação, previstas na Lei nº 8.666/93 (e, atualmente, na Lei nº 14.133/21).
Um dos maiores entraves à prestação satisfatória dos serviços públicos é o desvio de verbas em processos licitatórios de grandes obras ou serviços de alto valor. Isso ocorre, principalmente, devido a projetos mal realizados, que culminam na postergação indefinida da conclusão das obras e no descaminho de recursos públicos, inclusive em casos de dispensa e inexigibilidade.
3 – TRIBUTAÇÃO, EFICIÊNCIA e o CUSTO DA MÁ GESTÃO
Para gerar receita – que, lamentavelmente, muitas vezes "desce pelo ralo" devido ao tratamento espúrio do dinheiro do contribuinte – o Estado precisa tributar, aumentando ou criando novos tributos. No entanto, mesmo com uma carga tributária elevada, o serviço público não apresenta melhorias mínimas. A ineficiência, muitas vezes, não é apenas consequência de recessões econômicas ou incompetência administrativa, mas também da corrupção desenfreada. Como destaca o eminente jurista Kiyoshi Harada:
"Se há um dever de todo o cidadão de pagar impostos deverá haver, sem dúvida alguma, o direito inalienável desse cidadão de ser atendido pelo Estado-cobrador quanto às suas necessidades básicas em termos de serviços públicos essenciais, pois, impostos são instituídos exatamente para a prestação regular desses serviços públicos essenciais que conferem dignidade à pessoa humana."
O Poder Público acaba despejando a carga tributária sobre a população que mais necessita de serviços públicos eficientes para cobrir os atos irresponsáveis ou ilícitos de seus administradores. No Brasil, onde a tributação sobre o consumo é alta, ricos e pobres pagam a mesma carga como consumidores finais, resultando em uma proporcionalidade que onera desproporcionalmente os menos favorecidos.
Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), em 2014, o Brasil possuía uma das cargas tributárias mais elevadas do mundo (33,65% do PIB), mas em 2017, ficou em último lugar entre 30 países na reversão desses tributos em benefício da sociedade. Isso evidencia uma grave falha na gestão pública e um desrespeito aos direitos do contribuinte.
4 – PRINCÍPIOS DO SERVIÇO PÚBLICO: Violação e Impactos na Sociedade
Quando os serviços públicos não são prestados de forma adequada e satisfatória, os princípios fundantes que os regem são afrontados pela Administração Pública. Analisaremos alguns dos mais importantes:
- Princípio da Universalidade: Busca a prestação mais ampla possível dos serviços públicos para beneficiar o maior número de pessoas, sem discriminação. Contudo, a realidade mostra desigualdades gritantes, como a falta de acesso à rede de esgoto ou água encanada em áreas de risco, ou o tratamento diferenciado em hospitais públicos.
- Princípio da Continuidade do Serviço Público: Significa que o serviço público não pode ser interrompido, e as obras públicas não podem ficar inacabadas. No entanto, o Brasil possui 14.403 obras paradas, totalizando mais de R$ 144 bilhões, conforme dados do TCU, um descaso flagrante com o dinheiro do contribuinte e as necessidades da população.
- Princípio da Igualdade dos Usuários: Garante que, satisfeitas as condições legais, a pessoa tem direito à prestação do serviço sem distinção pessoal (Di Pietro, 2018, p. 182). Infelizmente, a desigualdade na distribuição de água, energia e esgoto é visível em grandes cidades brasileiras, onde moradores de áreas de alto padrão têm acesso ininterrupto, enquanto áreas carentes sofrem com a distribuição reduzida ou intermitente.
- Princípio da Eficiência: Inserido no art. 37 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 19/1998 (Reforma Administrativa), exige que a Administração Pública preste os melhores serviços possíveis com o mínimo de recursos. Como bem conceitua Celso Antônio Bandeira de Mello, é um "mandamento nuclear de um sistema", que deve nortear toda a Administração. A Procuradora Federal Elaine Virgínia Castro destaca que a tradicional administração pública burocrática gerou um viés pejorativo ao termo, indicando "a prestação de um serviço público que não atende as expectativas do cidadão, demorado e com a utilização de procedimentos pré-definidos, e muitas vezes, desnecessários". Isso evidencia que a burocracia excessiva ainda emperra a máquina pública.
5 – DESAFIOS LEGISLATIVOS E BUROCRÁTICOS: A Lei de Licitações e o Mau Planejamento
Para que a Administração possa prestar serviços melhores e mais eficientes, é imperativo fechar as brechas que a Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93, e seus desafios na transição para a Lei nº 14.133/21) historicamente abriu para a corrupção e o desperdício de verbas públicas. A professora Maria Sylvia Zanella di Pietro aponta falhas significativas na Lei 8.666/93:
"Essa lei tem muitas falhas, além do excesso de formalismo que não existe em outros países, é um procedimento que peca pela falta de transparência, sempre achei errada a realização da fase de habilitação antes da fase de julgamento [...] É praticamente inexistente a possibilidade de saneamento de falhas que às vezes afasta um licitante por um erro bobo”.
Ela também lista a ausência de previsão para procedimentos eletrônicos, a preferência pelo critério do preço em detrimento da técnica e a aplicação de um regime jurídico idêntico para todas as entidades da Administração Pública, inclusive empresas estatais, como problemas da lei anterior.
Marçal Justen Filho (2004, p. 109) enfatiza que "lamentavelmente, no Brasil, as obras são licitadas, no mais das vezes, sem a existência de um projeto executivo prévio, o que impossibilita a avaliação da compatibilidade dos custos com o interesse coletivo". O mau planejamento de projetos é um vício que reflete diretamente no orçamento final e na qualidade dos serviços públicos.
A burocracia estatal também prejudica o dinamismo na prestação de serviços essenciais, como abastecimento de água e tratamento de esgoto (art. 10 da Lei 7.783/89). O cidadão que busca o Poder Público para um serviço enfrenta uma "Via Crúcis" de cartórios, selos, protocolos, documentos e certidões. A título de exemplo, para abrir uma empresa no Brasil, o tempo médio é de 79,5 dias, comparado a 1 a 4 dias em países como EUA e Austrália, segundo levantamento do Instituto Endeavor. Esta lentidão impacta diretamente a sociedade e a economia.
(Obs.: Este texto foi elaborado ainda sob a égide da antiga Lei de Licitações - Lei nº 8.666/93 -, e é fundamental que o leitor trave um paralelo com as inovações trazidas pela Lei nº 14.133/21, que busca modernizar e tornar mais eficiente o sistema de contratações públicas no Brasil.)
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REFERÊNCIAS:
- ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. 1ª Ed. Vol. 631. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 31ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
- HARADA, Kiyoshi. Poder Tributário. Jus Navigandi, 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77201/poder-tributario. Acesso em: 20 nov. 2019.
- CNPL: Brasil é o país que proporciona o pior retorno em serviços públicos à sociedade. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO “IBPT”. 2017. Disponível em: https://ibpt.com.br/noticia/2595/CNPL-Brasil-e-o-Pais-que-proporciona-pior-retorno-em-servicos-publicos-a-sociedade. Acesso em: 20 nov. 2019.
- BRASIL. Tribunal de Contas da União. Auditoria operacional sobre obras paralisadas. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-sobre-obras-paralisadas.htm. Acesso em: 20 nov. 2019.
- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 31ª Ed. São Paulo: Malheiros. 2014.
- RIOS, Elaine Virginia Castro Cordeiro. Breves Considerações sobre o Princípio da Eficiência. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 10 nov. 2019. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42659/breves-consideracoes-sobre-o-principio-da-eficiencia. Acesso em: 20 nov. 2019.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Professora Maria Sylvia aponta falhas na lei 8.666/93 e afirma que licitações são portas abertas para a corrupção. Fórum, 2019. Disponível em: https://www.editoraforum.com.br/noticias/item/professora-maria-sylvia-aponta-falhas-na-lei-8-66693-e-afirma-que-licitacoes-sao-portas-abertas-para-corrupcao/. Acesso em: 20 nov. 2019.
- JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 10ª Ed. São Paulo: Dialética, 2004.
- ABERTURA de empresas no Brasil emperra nas prefeituras e leva mais de 100 dias. Gazeta do Povo, Curitiba, 18 jan. 2017. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/economia/empreender-pme/abertura-de-empresas-no-brasil-emperra-nas-prefeituras-e-leva-mais-de-100-dias-28aiwfb1nhqtt1l9snqms4gc3/. Acesso em: 21 nov. 2019.