O ICMS devido pela usina sobre o etanol anidro combustível (EAC) adquirido pela distribuidora para a produção de gasolina C: 1) é diferido para o momento da venda da gasolina C por esta última, como prescreve o artigo 419, caput, do RICMS/SP; e 2) é pago por substituição pela refinaria ou pela formuladora, que — ao venderem-lhe a gasolina A — já recolhem o ICMS-ST calculado sobre o preço presumido de venda da gasolina C ao consumidor final (RICMS/SP, artigo 419, parágrafo 1º)[1] [2].
A autorização a tal diferimento, referida no artigo 419, inciso III, do RICMS/SP, sempre esteve sujeita a requisitos de natureza formal e quantitativa (artigo 419, parágrafo 2º, itens 2 a 4). O Decreto 65.848, de 5/7/2021, acrescentou condição claramente inválida para a autorização, negando-a quando o fornecedor da gasolina A esteja inadimplente em relação ao ICMS-ST devido a São Paulo (RICMS/SP, artigo 419, parágrafo 2º, item 5).
O diferimento, na medida em que promove a postergação do pagamento do ICMS, é hipótese de substituição tributária para trás. Nesse sentido, a doutrina e Roque Carrazza [3] e a jurisprudência do STF [4]. Sendo substituição tributária, exige submissão a parâmetros gerais fixados em lei complementar (CF, artigos 146, inciso III, alínea "a", e 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea "b") e deve ser regido em cada situação concreta por lei ordinária estadual (LC 87/96, artigo 6º). Ora, a restrição ao diferimento em virtude da inadimplência de terceiro não encontra respaldo na Lei Kandir em nenhuma lei paulista, não sendo cabível pretender fundamentá-la em regras genéricas sobre a implementação, pelo Poder Executivo, dos interesses do Fisco. Delegação legislativa externa em matéria de substituição tributária é inadmissível, a teor da jurisprudência do STJ e do STF [5].
Não se está a afirmar que o Estado não possa impor nenhuma condição ao diferimento. Mas o requisito ora instituído, além de constituir sanção política voltada a forçar o pagamento de tributos, contra as Súmulas 70, 323 e 547 do STF, liga-se ao comportamento, não do beneficiário do diferimento, mas de um terceiro! De notar que, na situação em exame, sequer a responsabilidade pelo pagamento do ICMS poderia ser-lhe atribuída, eis que — ao comprar a gasolina A — sofre a retenção do ICMS/ST também quando ao EAC, cujo ônus econômico já suportou e não pode ser chamado a suportar novamente. Em caso de inadimplência, o tributo deve ser exigido do substituto, pois foi este quem se apropriou do valor correspondente. Não por outra razão, a falta de pagamento do ICMS/ST retido é unanimemente reconhecida como subsumível ao crime do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90. Se não há espaço sequer para a responsabilidade tributária, com maior razão será descabida a sanção consistente na perda do diferimento.
É que a pretensão punitiva do Estado se limita por princípios constitucionais, entre os quais a intranscendência das infrações e a pessoalidade das sanções (artigo 5º, inciso XLV), que — na lição sempre segura do Ministro Celso de Mello — "impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator" [6]. No mesmo sentido a doutrina especializada [7] e a jurisprudência do STJ e do TJ-SP [8].
A intranscendência aplica-se ainda que fabricante e distribuidora componham o mesmo grupo econômico, pois tais empresas mantêm sua autonomia patrimonial, operacional e orçamentária, sendo descabida a imposição automática de solidariedade — cujos requisitos precisam ser motivados em cada caso de forma explícita e consistente. É o que determina o artigo 50, parágrafo 4º, do Código Civil e o que decorre da iterativa jurisprudência do STJ sobre o artigo 124 do CTN [9].
Por fim, tem-se que o requisito aqui analisado falha também nos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, vez que:
— É arbitrário, por atribuir consequência para atos alheios que o sancionado não pode evitar;
— Não é necessário, face à responsabilidade tributária e criminal do substituto pelo eventual não pagamento do ICMS/ST; e
— É desproporcional em sentido estrito, porque o fim a que visa (assegurar o recolhimento do imposto ao Estado de origem do EAC) haveria de ser atingido sem prejuízo de terceiro, sobretudo quando — entre todos os destinatários potenciais da sanção — foi precisamente ele quem suportou o ônus do imposto inadimplido.
A arrecadação tributária é essencial para a implementação das políticas de um Estado democrático de Direito, mas isso não a livra das amarras por ele próprio estabelecidas.
[1] As regras têm apoio na cláusula 21, caput e parágrafo 1º, do Convênio ICMS 110/2007.
[2] A gasolina C, vendida ao público nos postos de combustíveis, é uma mistura de gasolina A com etanol anidro combustível – EAC.
[3] ICMS. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 407-408.
[4] Pleno, RE 781.926/GO, Relator Ministro Luiz Fux, DJe 05.03.2014.
[5] STJ, 2ª Turma, RMS 11.691/ES, Relator Ministro Humberto Martins, DJe 28.08.2007; STJ, 1ª Turma, RMS 11.600/ES, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ 01.10.2001; STF, Pleno, ADI 4.281/SP, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJe 18.12.2020; STF, Pleno, ADI 6.624/AM, Relator Ministro Dias Toffoli, DJe 08.09.2021.
[6] STF, Pleno, AC 1033 AgR-QO, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 16.06.2016.
[7] Gustavo Binenbojm. O direito administrativo sancionador e o estatuto constitucional do poder punitivo estatal: possibilidades, limites e aspectos controvertidos da regulação do setor e revena de combustíveis. In. Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro: Administração Pública (Edição Especial), Risco e Segurança Jurídica, 2014, p. 471-472. Fábio Medina Osório. Direito administrativo sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 338-340.
[8] STJ, 2ª Turma, REsp 1.792.954/RS, Relator Ministro Francisco Falcão, DJe 18.03.2021; TJ/SP, 15ª Câmara de Direito Público, Apelação Cível 0515497-94.2013.8.26.0566, Relator Desembargador Eurípedes Faim, DJe 10.04.2018.
[9] É ver, entre tantos outros: STJ, 1ª Turma, AgInt no AREsp 1.035.029/SP, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 30.05.2019.
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Fonte: Conjur