Inversão do ônus da prova exige que gestor tenha constado do lançamento

O processo de execução traduz-se em atos materiais voltados a constranger o devedor ao cumprimento da obrigação, exigindo por isso mesmo elevado grau de certeza quanto à existência e ao objeto desta. Na execução de título executivo judicial (ora denominada cumprimento de sentença), essa certeza advém do fato de que o acertamento da dívida foi realizado pelo Poder Judiciário, com todas as garantias de que este se reveste.


Na execução de título extrajudicial, em regra essa certeza advém da participação voluntária do devedor na constituição do título executivo (cheque, contrato com duas testemunhas etc.). Tal consentimento normalmente não existe — salvo nos casos de confissão de dívida — na formação do título executivo manejado pela Fazenda Pública (a CDA), sendo a sua falta suprida pela abertura de oportunidade ao particular para impugnar administrativamente o lançamento, o qual só ao fim deste processo adquirirá a presunção de liquidez e certeza imprescindível ao processo de execução. Na lição de Ronaldo Cunha Campos, a estruturação desse processo de revisão do lançamento "gera a presunção do caráter infundado desta resistência quando repelida ao final do procedimento", presunção na qual "se estriba a lei para afastar o consenso como requisito do acertamento da obrigação tributária" [1].


Na mesma linha, e tratando especificamente do coobrigado, registra Hugo de Brito Machado Segundo que, "para que um sócio ou administrador seja inserido no corpo de uma certidão de dívida ativa (CDA), é preciso que tenha havido a prévia apuração de sua responsabilidade tributária, no âmbito de um processo administrativo". E conclui: "não é possível simplesmente acrescentar seu nome ao documento, quando da confecção deste, sem que isso seja o reflexo do que se apurou no âmbito do processo administrativo, do qual a CDA deve ser apenas o espelho" [2].


A imprescindibilidade do processo administrativo — melhor dizendo: da intimação para defesa — em relação a cada um dos sujeitos passivos a serem incluídos na CDA, como contribuintes ou responsáveis, é confirmada em diversos contextos pelo STJ. É conferir, entre tantas outras decisões:


"(...) 6. O lançamento realizado sem que o sujeito passivo tenha sido regularmente notificado configura cerceamento do direito de defesa no procedimento administrativo fiscal, tendo como consequência a não constituição definitiva do crédito tributário que embasou a CDA. (...)" (2ª Turma, AgRg no AREsp. 649.835/RS, relator ministro Humberto Martins, DJe 25/3/2015)


"(...) 11. A inscrição em dívida ativa, de onde se origina a posterior extração da Certidão que poderá ser levada a protesto, decorre ou do exaurimento da instância administrativa (onde foi possível impugnar o lançamento e interpor recursos administrativos) ou de documento de confissão de dívida, apresentado pelo próprio devedor (e.g., DCTF, GIA, Termo de Confissão para adesão ao parcelamento, etc.).

12. O sujeito passivo, portanto, não pode alegar que houve ‘surpresa’ ou ‘abuso de poder’ na extração da CDA, uma vez que esta pressupõe sua participação na apuração do débito. (...)" (2ª Turma, REsp. 1.126.515/PR, relator ministro Herman Benjamin, DJe 16/12/2013).


"(...) 3. Independentemente de a lei contemplar mais de um responsável pelo adimplemento de uma mesma obrigação tributária, cabe ao fisco, no ato de lançamento, identificar contra qual(is) sujeito(s) passivo(s) ele promoverá a cobrança do tributo, nos termos do art. 121, combinado com o art. 142, ambos do CTN, garantindo-se, assim, ao(s) devedor(es) imputado(s) o direito à apresentação de defesa administrativa contra a constituição do crédito. Por essa razão, não é permitido substituir a CDA para alterar o polo passivo da execução contra quem não foi dada oportunidade de impugnar o lançamento, sob pena de violação aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, também assegurados constitucionalmente perante a instância administrativa. (...)" (1ª Seção, EREsp. 1.115.649/SP, relator ministro BENEDITO GONÇALVES, DJe 8/11/2010).


"(...) 2. Insere-se nas garantias da ampla defesa e do contraditório a notificação do contribuinte do ato de lançamento que a ele respeita. A sua ausência implica a nulidade do lançamento e da Execução Fiscal nele fundada. (...)" (1ª Turma, REsp. 1.073.494/RJ, relator ministro Luiz Fux, DJe 29/9/2010).


Sabe-se que o STJ entende recair sobre o executado que consta da CDA o ônus da prova da inocorrência das hipóteses do artigo 135 do CTN (1ª Seção, REsp. 1.104.900/ES, relatora ministra Denise Arruda, DJe 1/4/2009). Mas isso, é óbvio, quando a sua inclusão no documento seja válida, vale dizer, quando ele tenha constado do lançamento, quando alguma acusação ali lhe seja irrogada, e quando lhe tenha sido dada oportunidade de impugnação administrativa.


Tanto quando a lei, também a jurisprudência exige interpretação sistemática, de forma a compatibilizarem-se os diversos pronunciamentos de um tribunal sobre o mesmo tema, sempre tendo-se como parâmetros os direitos e as garantias vazadas na Constituição Federal.


Descabida a citação direta do gestor indevidamente incluído na CDA (por não ter constado do lançamento), pode-se cogitar do redirecionamento da execução fiscal contra ele, mas agora cabendo à Fazenda Pública o ônus da prova do preenchimento de alguma das condições do artigo 135 do CTN.


 

[1] Execução Fiscal e Embargos do Devedor. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 120-121.


[2] Processo Tributário. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 232.

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Fonte: Conjur