DIFAL-ICMS: A Polêmica Alíquota que Desafia Contribuintes e a Justiça

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Introdução

O Diferencial de Alíquotas do ICMS (DIFAL-ICMS) tem sido, nos últimos anos, uma das principais fontes de incerteza jurídica e dores de cabeça para os contribuintes brasileiros. O que antes era uma medida de ajuste tributário, hoje se transformou em um complexo imbróglio jurídico-tributário, com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e uma subsequente reação legislativa e judicial. Para entender a atual polêmica do DIFAL-ICMS, é essencial revisitarmos sua origem e as transformações que moldaram o cenário atual.

1. Introdução ao ICMS e a Origem do DIFAL

Para compreender o DIFAL-ICMS, precisamos primeiro abordar o Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).

  • O legislador constituinte, percebendo a necessidade de um imposto que incidisse amplamente sobre a circulação de bens e serviços, inscreveu sua previsão no art. 155, II, da Constituição Federal de 1988.
  • Essa determinação constitucional foi detalhada com a vigência da Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir), que regulamentou o ICMS em nível nacional.
  • Nesse contexto, surgiu a necessidade de equilibrar a arrecadação do ICMS entre os estados de origem e destino nas operações interestaduais, especialmente aquelas destinadas a consumidor final não contribuinte do ICMS. Daí, a criação do DIFAL-ICMS.

2. A Evolução do DIFAL: De Antes a Agora

O DIFAL-ICMS, como popularmente conhecido, passou por significativas transformações desde sua concepção até os dias atuais. Essas mudanças foram impulsionadas, em grande parte, pelo crescimento exponencial do comércio eletrônico (e-commerce).

  • Anteriormente, nas operações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte, o ICMS era recolhido integralmente para o Estado de origem da transação.
  • Contudo, essa dinâmica começou a gerar desequilíbrios, pois a concentração de empresas de e-commerce em estados do Sudeste prejudicava a arrecadação dos demais entes estaduais, onde o consumo efetivamente ocorria.
  • Uma das alterações mais marcantes ocorreu com a vigência da Emenda Constitucional 87/15 (EC 87/15).
  • Juntamente com o Convênio CONFAZ 93/15, essa emenda estabeleceu uma nova regra: os Estados deveriam dividir o valor do ICMS a ser recolhido.
  • Essa partilha aconteceria de forma progressiva ao longo dos anos, com uma parcela maior para o estado de destino, até que em 2019 o recolhimento fosse integralmente para o estado onde o consumidor final se encontrava.
  • Essa regra de partilha progressiva visava mitigar os desequilíbrios arrecadatórios e é aplicada até hoje para as operações que se enquadram em sua abrangência.

3. O Epicentro da Polêmica: A Exigência de Lei Complementar Federal

A grande polêmica envolvendo o DIFAL-ICMS escalou quando contribuintes e especialistas perceberam que a forma de cobrança adotada pelos Estados, com base apenas em Convênio CONFAZ e emenda constitucional, estava gerando insegurança jurídica e possíveis inconstitucionalidades.

  • Diante da judicialização da questão, o Supremo Tribunal Federal, em 2021, proferiu uma decisão histórica nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5469 e do Recurso Extraordinário (RE) 1.287.019/DF (Tema 1093 de Repercussão Geral).
  • O STF reconheceu que a EC 87/15 criou uma nova relação jurídico-tributária entre o remetente do bem ou serviço (contribuinte) e o Estado de destino nas operações com bens e serviços destinados a consumidor final não contribuinte do ICMS.
  • A principal conclusão do STF foi que, para essa nova forma de cobrança do DIFAL, seria indispensável a edição de uma Lei Complementar Federal, não sendo suficiente apenas uma lei estadual ou um convênio do CONFAZ.

4. Modulação dos Efeitos e o Novo Imbróglio

Com o intuito de evitar um colapso financeiro imediato para os Estados e permitir que o Poder Legislativo editasse a necessária Lei Complementar, o Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos de sua decisão.

  • Isso significava que a decisão de inconstitucionalidade passaria a ter vigência apenas a partir do exercício financeiro seguinte à sua publicação (ou seja, a partir de 2022), ressalvando as ações judiciais já em andamento.
  • Diante do prazo estabelecido pelo STF, o Congresso Nacional agiu e aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 32/21, que detalhava as regras do DIFAL-ICMS, em dezembro de 2021.
  • No entanto, o problema persistiu: a sanção presidencial da lei federal demorou. O texto, que regulamentava o DIFAL, foi sancionado e publicado apenas em 4 de janeiro de 2022, transformando-se na Lei Complementar 190/22.

5. As Consequências e a "Anarquia Jurisprudencial"

A sanção tardia da Lei Complementar 190/22 teve consequências imediatas e complexas. Muitos Estados, sob a interpretação de que a lei havia sido publicada em 2022, continuaram a cobrança do DIFAL já a partir de janeiro do mesmo ano. Essa postura, no entanto, desrespeita a decisão da Corte Suprema e, principalmente, os princípios constitucionais da anterioridade e da noventena (ou anterioridade nonagesimal).

  • Esses princípios, consagrados no art. 150, III, b) e c) da Constituição Federal, garantem que nenhum tributo poderá ser cobrado:
    • No mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou (princípio da anterioridade anual).
    • Antes de decorridos noventa dias da data da publicação da lei que o instituiu ou aumentou (princípio da anterioridade nonagesimal ou noventena).
  • Apesar da publicação da Lei Complementar 190/22 em 4 de janeiro de 2022, a sua aplicação imediata pelos Estados violaria ambos os princípios.
  • Como resultado, surgiu uma avalanche de ações judiciais questionando a legitimidade da cobrança do DIFAL-ICMS em 2022, usando como argumento principal o respeito a esses princípios constitucionais.
  • Muitos contribuintes e empresas ficaram e ainda estão em um limbo de insegurança jurídica:

"As empresas estão com muitas dúvidas. Há as que estão recolhendo para depois, caso seja possível, discutir um ressarcimento no futuro. Há quem não esteja recolhendo, mas não sabe avaliar os riscos, e outras buscando o poder judiciário para obter maior segurança jurídica." (Âmbito Jurídico, 2022)

  • No plano econômico, a proibição da cobrança do DIFAL por força judicial representaria um impacto financeiro significativo para os Estados, estimado em dezenas de bilhões de reais.
  • No plano judicial, a situação também se complexificou, instaurando o que alguns chamam de "anarquia jurisprudencial". O Tribunal de Justiça do Espírito Santo, por exemplo, firmou entendimento de que a cobrança do DIFAL já em 2022 seria legal.
  • A justificativa para a suspensão de liminares e sentenças de primeira instância que proibiam a cobrança baseou-se no prejuízo à economia pública e na interpretação de que a modulação do STF já teria dado o "lapso temporal para fins de organização entre os Estados", não configurando a instituição ou majoração de novo tributo, e, portanto, não se sujeitando à regra da anterioridade.
  • Essa disparidade de entendimentos entre os Tribunais de Justiça estaduais e a decisão do STF gerou ainda mais incerteza e evidenciou a complexidade do tema.

6. A Inconstitucionalidade da Cobrança do DIFAL-ICMS em 2022

Diante de todo o histórico e dos argumentos legais, a cobrança do DIFAL-ICMS no exercício financeiro de 2022, antes do cumprimento dos prazos de anterioridade anual e noventena da Lei Complementar 190/22, é, para muitos juristas, inconstitucional.

  • A violação ao princípio da anterioridade tributária é uma garantia fundamental do contribuinte, consagrada na Carta Magna de 1988.
  • Ela assegura a previsibilidade fiscal, impedindo que uma lei crie ou majore tributos de forma repentina, impactando severamente a estrutura financeira de cidadãos e empresas.
  • Os Estados, mesmo diante das dificuldades financeiras, não podem exercer seu poder de império de forma coercitiva e ilegal sobre o patrimônio dos contribuintes.
  • Ignorar os princípios da anterioridade e da noventena significa desrespeitar cláusulas pétreas da Constituição Federal, abrindo precedentes perigosos e gerando um ambiente de insegurança jurídica que, como alertou Scaff, pode levar ao "caos" com bloqueios e execuções fiscais indevidas.

A discussão sobre o DIFAL-ICMS continua e exige atenção constante de contribuintes, contadores e advogados, pois as decisões judiciais e as interpretações da lei ainda estão em desenvolvimento.