Vedação de retrocesso social em pauta no STF: caso da ADI 5.595

Retorna à pauta do STF uma questão emblemática relativa ao financiamento da saúde pública pela União, envolvendo o Princípio da Vedação ao Retrocesso Social, que está disseminado em nossa Constituição, mas que, de forma simplificativa, pode ser ancorado no artigo 1º, III, que trata da dignidade da pessoa humana. Trata-se da ADI 5.595, proposta muito antes da pandemia, mas com inegáveis reflexos nos dias atuais e no porvir, que retornará para votação no Plenário Virtual do STF entre os dias 2 e 12 de setembro de 2022.


O "placar" atual é: os ministros Ricardo Lewandowski (relator, que concedeu a liminar pleiteada), Edson Fachin e Marco Aurélio, julgaram procedente o pedido inicial para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da EC 86/2015. A ministra Cármen Lúcia acompanhou o relator com ressalvas. Os ministros Gilmar Mendes e Luiz Fux votaram pela improcedência, entendendo prejudicado o pedido em relação ao artigo 2º . O ministro Alexandre de Moraes votou pela improcedência da ação. Faltam votar os ministros Dias Toffoli, Roberto Barroso, Rosa Weber e Nunes Marques.


A ADI 5.595 foi proposta em setembro de 2016 pelo Procurador Geral da República, tendo por objeto a declaração de inconstitucionalidade de dois artigos da EC 86/15, o artigo 2º e o 3º.  


O artigo 2º estabelecia que o valor a ser dispendido pela União com saúde seria "cumprido progressivamente", garantido um "piso" de, no mínimo, 13,2% da receita corrente líquida em 2017.


O argumento pela inconstitucionalidade é principiológico e substancial: o valor mínimo que a União deveria financiar para gastos com saúde foi estabelecido pela Lei Complementar 141/12 (artigo 5º), logo, pelo Princípio da Vedação ao Retrocesso Social, a progressividade estabelecida pelo artigo 2º acarretaria menos dinheiro para a saúde pública. Ocorre que o artigo 2º foi revogado pela EC 95/16, que instituiu o teto de gastos. Logo, aparentemente, a ADI teria perdido o objeto com referência ao artigo 2º.


Eis o ponto: como a EC 95 estabeleceu um teto de gastos, o percentual mínimo a ser despendido com saúde pela União acabou sendo congelado em patamar inferior (13,2%) àquele antes estabelecido, sendo que, a partir desse piso "rebaixado", perdurará por 20 anos.


Logo, não há perda de objeto da ADI com relação ao artigo 2º em razão dos efeitos que esta norma, mesmo revogada, projetou para o futuro, sendo necessário declarar se ocorreu ou não violação à proteção estabelecida pelo Princípio da Vedação ao Retrocesso Social. Nesse sentido, mesmo revogada a norma, é necessário que o STF declare que ela foi ou não constitucional durante sua vigência.


O artigo 3º não foi revogado, mas igualmente traduz um retrocesso ao financiamento da saúde pública pela União. Este artigo estabeleceu que o valor arrecadado pela União a título de royalties sobre o petróleo e gás seria utilizado no financiamento da saúde pública, o que pode parecer um avanço, mas, na verdade, trata-se de um retrocesso. Anteriormente, o artigo 4º da Lei 12.858/13 estabelecia que esta receita seria utilizada como um "acréscimo" ao financiamento da saúde, e não "dentro" do piso.


O Princípio da Vedação ao Retrocesso Social já foi reconhecido pelo STF em algumas oportunidades, tendo como referência o julgamento do ARE 639.337, relatado pelo ministro Celso de Mello, cuja ementa se transcreve de forma parcial: "o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. (...). Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar — mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados." Para análise de outros casos, recomendo a leitura do livro de Marina Tanganelli Bellegarde.


A ADI 5.595 discute um controle de constitucionalidade substancial, e não singelamente formal. Não existem direitos sociais, que são prestacionais, sem financiamento. Declarar que "a saúde é direito de todos e dever do Estado" (artigo 196, CF) se torna letra morta se não forem alocados recursos para sua concretização. Aqui se encontra substancialmente o debate sobre a Vedação ao Retrocesso Social, e não em uma discussão formal entre o caput do artigo 5º da Lei Complementar 141/12 e o artigo 4º da Lei 12.858/13 em contraposição ao artigo 198, §2º, I, da Constituição, objeto do revogado art. 2º da EC 86. Como envolve o financiamento de políticas públicas, não se trata de uma questão microjurídica, própria da justiça comutativa, mas macrojurídica, âmbito da justiça distributiva — conforme expus no livro Da igualdade à liberdade: considerações sobre o princípio jurídico da igualdade.


É desnecessário dizer da importância do SUS, amplamente conhecida e reconhecida durante o período pandêmico. O que deve ser destacado é que seu patamar de financiamento decorreu da muito bem fundamentada decisão liminar do Ministro Ricardo Lewandowski suspendendo os efeitos dos artigos 2º e 3º da EC 86/16. Retirar dinheiro do piso da saúde pública será deixar a população ainda mais carente de bens e serviços públicos.

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Fonte: Conjur