Custeio de despesas não contingenciáveis limita opção por abdicar receitas

 Às vésperas do calendário eleitoral, a pressão por inibir a arrecadação tributária tornou-se tão ou mais voraz do que a demanda pela expansão de gastos. Nesse contexto, é equivocado propor ajuste fiscal tão somente focado na contenção das despesas primárias, sem que haja concomitante reflexão sistêmica acerca de problemas crônicos na gestão das receitas, como o são:


1) Renúncias fiscais concedidas por prazo indeterminado, sem suficiente comprovação de não afetação nas metas fiscais e, ato contínuo, carentes de medidas compensatórias juridicamente válidas. A isso se soma a falta de monitoramento das contrapartidas que lhes justificaram e condicionaram a existência. Assim, considerável proporção dos gastos tributários se tornou instrumento opaco de fomento ao mercado e ao terceiro setor, por vezes embolsado como mera disponibilidade privada de caixa, sem maior garantia de atendimento às demandas efetivas da sociedade;


2) Risco moral de que a deliberada sonegação tributária seja premiada por programas sucessivos de reparcelamento de débitos junto ao fisco;


3) Baixa capacidade de arrecadação da dívida ativa, o que passa a servir de pretexto para a securitização dos seus recebíveis, em rota de frustração dos pisos de custeio da saúde e da educação, além de configurar operação de crédito que afronta teleológica e estruturalmente a Lei de Responsabilidade Fiscal; e, por fim, mas não menos importante:


4) Regressiva matriz tributária que incide menos sobre a riqueza e a renda, do que sobre a produção e o consumo, daí porque os mais pobres pagam proporcionalmente mais tributos que os mais ricos em nosso país.


Muito embora haja maiores vigilância midiática e controle institucional sobre as despesas primárias, a fuga às regras fiscais igualmente tem ocorrido no manejo obtuso e pouco transparente das receitas governamentais.


É bem verdade que, para ampliar despesas primárias de trato balcanizado e curto fôlego, o Novo Regime Fiscal (teto) foi alterado três vezes em 2021 (Emendas 109, 113 e 114), assim como foram admitidos controversos créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis no segundo ano de pandemia. Mas também vale lembrar que, para reduzir a carga tributária de modo iníquo e irrefletido, tem sido recorrentemente descumprido o artigo 113 do ADCT, assim como foi falseado o atendimento ao dever de apresentação de plano de revisão das renúncias fiscais, a que se refere o artigo 4º da Emenda 109/2021. Tais exemplos são parciais, mas sintomáticos, porque adstritos aos recentes anos pandêmicos e indicam os horizontes da sua possibilidade de efetiva superação (ou não).


A confluência desses movimentos impacta a capacidade federativa de gerenciamento de serviços públicos universais. Se, de um lado, a priorização balcanizada de despesas discricionárias frustra o planejamento setorial das políticas públicas (do que dá prova o Orçamento Secreto); do outro, a inibição da receita de impostos evidentemente compromete a base de cálculo dos pisos em saúde e educação (como tratamos aqui).


O que está por trás de ambas as movimentações de curto prazo eleitoral é uma paulatina desconstrução fiscal de bens e serviços que deveriam garantir estruturalmente a própria razão de ser da atuação estatal ao longo do tempo. Isso ocorre na medida em que não temos debatido, com clareza, a existência de um tamanho indisponível do Estado brasileiro do ponto de vista do arcabouço normativo que rege nossas finanças públicas.


Engana-se quem acha que a carga tributária pode ser reduzida de forma aparentemente ilimitada e quase completamente dissociada dos compromissos incomprimíveis de gasto atribuídos ao Estado pela Constituição de 1988.


Caso não haja aprimoramento da qualidade da execução orçamentária para torná-la mais aderente ao planejamento setorial das políticas públicas, inibir as receitas tributárias necessariamente implicará escolher entre reduzir quantitativamente o raio da ação estatal, ou majorar o endividamento público. Em qualquer dessas hipóteses, haverá uma frustração do regime constitucional das finanças públicas brasileiras.


Eis o contexto em que é preciso pautar a estreita conexão instrumental entre as receitas estatais e o rol de despesas não suscetíveis de limitação de empenho ou pagamento, na forma do artigo 9º, §2º, da LRF. Tais despesas devem ser mantidas, ainda que a estimativa de arrecadação se revele frustrada ao longo do exercício financeiro e ainda que haja risco de afetação das metas fiscais. O tamanho do Estado em nosso país não pode ser reduzido em patamar aquém desse elenco que agrega as despesas que correspondem às suas inadiáveis e incomprimíveis obrigações constitucionais e legais.


Para assegurar a consecução das despesas não contingenciáveis durante a execução orçamentária, é admissível até mesmo que haja a expansão motivada das operações de crédito, mediante a pertinente autorização legal qualificada da quebra da regra de ouro, se necessário.


Abdicar receitas tributárias, portanto, não é escolha discricionária que estaria limitada tão somente pelo horizonte formal da sustentabilidade da dívida pública dado pela meta de resultado primário. Há correlatamente o limite substantivo do dever de custeio suficiente das despesas não suscetíveis de contingenciamento. Tais despesas são incomprimíveis, porque expressam o tamanho necessário do Estado para cumprir, cabe reiterarmos, suas obrigações constitucionais e legais qualitativamente destinadas à garantia dos direitos fundamentais.


Daqui a duas semanas será enviado o projeto de lei de diretrizes orçamentárias para 2023 e ali será feita a identificação não apenas das metas fiscais que apontarão para o horizonte intertemporal de sustentabilidade da dívida pública, mas também serão arroladas as despesas incomprimíveis que perfazem o tamanho constitucionalmente necessário do Estado brasileiro.


Tal diagnóstico é essencial para pautarmos em patamar mais equitativo a reflexão sobre os rumos das nossas finanças públicas. Falta-nos, porém, avançar em relação ao controle da pretensão de reduzir a carga tributária a tal ponto de que reste comprometida a sustentabilidade da dívida, ou ao ponto de que seja erodida a capacidade estatal de consecução dos serviços públicos essenciais.


Inibir a arrecadação da primordial fonte republicana de custeio do Estado é escolha que, no mínimo, demanda maiores ônus argumentativos, porque sujeita dialeticamente a limites que atestam seus impactos quantitativos e qualitativos na nossa vida em sociedade.

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Fonte: Conjur