Um novo olhar sobre o tema da tributação da economia criativa no Brasil

É certo de que o setor criativo no Brasil é um ativo que vale a pena proteger e incentivar. Resta saber como isso pode ser feito

Crédito: Pixabay
As cadeias produtivas no setor criativo da economia são bastante amplas e diversificadas. Algumas são facilmente identificáveis, como a música, o audiovisual, as produtoras de games, os museus, as artes cênicas e a literatura. Enquanto outras não são tão claramente vistas, como a pesquisa feita por uma indústria farmacêutica para um novo medicamento.
A abrangência não é o único aspecto que traz dificuldades para o estudo desse setor. Com a globalização e a informatização dos dados, os serviços estão todos conectados. Pode ser que uma peça publicitária esteja sendo elaborada com a confecção de um vídeo ou de uma música e que esteja sendo divulgada por meio de um serviço de streaming.
A tributação entra nesse imbróglio atropelando tudo. Como são vários setores envolvidos, tem-se tanto a incidência de tributos sobre a circulação como sobre o patrimônio e a renda. Mas não é só isso. Como fica a tributação de uma cadeia que envolve dois países distintos? Houve a criação de uma obra filmográfica no Brasil, contudo, sua distribuição será feita por toda a América do Sul. E se o Brasil tiver tratado de bitributação com algum desses países, será que isso trará impactos? E tem também a questão dos intangíveis, visto que, quando se fala em economia criativa, se trata basicamente deles, que são um ponto frágil na tributação do comércio exterior. Os royalties devem seguir as diretrizes da OCDE com relação a preços de transferência?
Para além disso, nos dias de hoje, em parte graças à tecnologia, a cultura é um movimento de ida e volta. O espectador não é mais um sujeito passivo que aceita o que vê, escuta ou ouve sem participar. Os limites entre criação, distribuição e recepção estão obscurecidos. Essa plasticidade, que tende a aumentar ainda mais, afeta a tributação e a forma como é vista.
Aqui se para um pouco para dizer que o incentivo à economia criativa não deve olhar somente para o futuro. É que, mesmo havendo modificações nas cadeias criativas em face da tecnologia, os atores tradicionais que dominavam as cadeias de valor antes da digitalização ainda permanecem no lugar e detém um papel fundamental na atual organização econômica. Esses atores podem ser considerados essenciais para a perpetuidade do patrimônio histórico de um país, motivo pelo qual os responsáveis pelas políticas públicas podem entender destinar algum incentivo e não deixar morrer essa parte da economia.
Por outro lado, existem atores que devem modificar seu papel na cadeia criativa ou não sobreviverão às mudanças tecnológicas. As antigas formas tradicionais de adquirir e consumir passivamente conhecimentos, como, por exemplo, visitar museus ou galerias, estão mudando à medida que as próprias instituições culturais estão se tornando cada vez mais interativas. Eles não são mais apenas cidadelas do conhecimento, mas ferramentas reais para que as comunidades se revistam de poder.
Além de ser um mercado em expansão, a economia criativa impacta outros setores da economia. Por exemplo, o público que visita museus e teatros também pode visitar hotéis, restaurantes e cafés vizinhos. Essas empresas desfrutam de externalidades positivas de museus e de teatros gratuitamente, mas museus e teatros não podem cobrar das empresas vizinhas por esses benefícios. Para mais, a demanda adicional pelos produtos das economias criativas pode induzir uma oferta adicional nesses setores e em outras economias ainda. Isso é chamado de efeito multiplicador das economias criativas. Sem contar que, através da mobilidade da força de trabalho criativa e da transferência de conhecimento, outras indústrias podem desenvolver novas ideias e melhorar a produtividade.
Como resultado, em quase todos os países do Ocidente e cada vez mais nos países dos BRICS, economistas, comentaristas políticos e especialistas urbanos têm observado consistentemente a relevância da cultura e da criatividade como ingredientes-chave das economias urbanas prósperas.  Por extensão, a capacidade de atrair, reter e apoiar pessoas criativas e uma forte economia criativa são vistas como marcadores de cidades e países de sucesso (OECD, 2018).
É certo de que o setor criativo no Brasil é um ativo que vale a pena proteger e incentivar. Resta saber como isso pode ser feito.
Helmels (2017) indica políticas públicas que podem ser utilizadas para estimular a economia criativa:
  • legislação – por exemplo, a exigência de uma permissão ou certas qualificações para atuar em um determinado setor da economia criativa;
  • campanhas de informação e estímulo – por exemplo, uma campanha para promover o consumo de produções audiovisuais brasileiras;
  • multas ou taxas – por exemplo, uma multa para cinemas que só passem produção estrangeira ou um alto imposto de importação para esses filmes;
  • subsídios diretos, garantias e empréstimos – por exemplo, subsídios do governo para artistas e garantias ou empréstimos baratos para startups criativas; e,
  • incentivos fiscais – por exemplo, dedução de impostos para produtores de filmes.
Na determinação de qual o melhor incentivo para um setor da economia, é necessário que sejam analisados os custos e benefícios da política. No caso de benefícios tributários, é muito difícil se determinar o real gasto da medida (quanto se vai gerar de renúncia de receitas). Portanto, por definição, os custos desses benefícios são estimados.
Além da dificuldade de se medir quanto vai se deixar de arrecadar, existem várias outras alegações teóricas e práticas contra benefícios tributários identificadas pela OCDE (2010) e por grande parte da doutrina. Contudo, as preocupações não são, por si só, uma boa razão para descartar os benefícios tributários como ferramentas de política econômica. Essas preocupações podem não se configurar como problemas reais se os incentivos forem utilizados com parcimônia, em casos em que o subsídio direto não seja tão eficiente. De qualquer forma, o legislador deve estar ciente das consequências que a política pode ter para a divisão da carga tributária entre cidadãos e empresas.
O efeito de usar um benefício tributário em vez de um subsídio direto é duplo. Primeiro, quando se usa um benefício as instituições culturais precisam levar em consideração as preferências de seu público e criar um vínculo com elas para atrair doações. O segundo efeito é que todos os contribuintes apenas pagam parte dos custos. A outra parte é financiada pelos entusiastas da arte. Por exemplo, ao se subsidiar uma Ópera, evento cultural normalmente frequentado por pessoas de classe alta, todos estarão pagando.
As indústrias criativas podem reagir de modo diferente com relação aos subsídios diretos e aos benefícios tributários. Essas reações devem influenciar a escolha do instrumento mais apropriado para uma determinada política pública. Um subsídio do governo pode criar um sentimento de dependência que atrapalhe o desenvolvimento do empreendedorismo e o sentimento de responsabilidade própria. Benefícios fiscais que, por exemplo, reduzem a carga tributária sobre certas empresas criativas podem, por outro lado, incentivar um espírito empreendedor. Estes não têm a forma de transferência direta de dinheiro e, portanto, mantêm o sentimento de independência.
Mesmo assim, é importante relevar que não é uma questão de utilizar somente benefícios tributários em detrimento de subsídios diretos. Tem de ser feita uma análise de cada setor para se identificar a melhor política. Hemels (2017) indica que se a política se destina a incentivar indústrias criativas, por exemplo, filmes, arquitetura ou videogame, os benefícios podem ser um instrumento mais eficaz do que os subsídios. Por outro lado, para setores menos comerciais, como poesia e arte conceitual, o sucesso de público pode não ser a melhor referência.
Voltando ao setor criativo que se quer incentivar, é importante retomar o aspecto de que a tecnologia tem mudado constantemente os mercados. Pensar em alternativas para resolver problemas atuais sem levar em conta essa evolução, pode acarretar desperdício de esforço para implantação de uma política pública que já nasce obsoleta. Essa crítica fica clara quando se olha para a imunidade musical, estabelecida pela Emenda Constitucional nº 75, de 2013. Seu principal objetivo era diminuir os efeitos maléficos da pirataria de CDs; no entanto, com a mudança do suporte físico para o suporte digital, a imunidade praticamente perdeu seu objetivo, não tendo gerado o impacto desejado.
A necessidade dessa estruturação dos investimentos públicos deve ser vista em paralelo com o fato de ser o Município o ente público com maiores possibilidades de perfazer políticas públicas para a economia criativa. A economia criativa abarca um número grande de atividades e cada município conta com características próprias que favorecem o florescimento de nichos peculiares.
O papel da União e dos Estados nessas circunstâncias é apoiar os Municípios nessa Agenda, tanto com recursos quanto com políticas públicas. Para isso, os subsídios diretos e o os benefícios fiscais são instrumentos efetivos.
O Brasil é um país que tem grande potencial de crescimento para a sua economia criativa, políticas públicas pensadas com o fulcro de dar suporte financeiro e de facilitar os trâmites burocráticos que impactam o setor poderiam ser decisivas nesse processo. A ver como se dará esse movimento nos próximos anos, sabendo-se que as principais economias mundiais já se voltam para esse mercado com toda a força.
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HEMELS, Sigrid. Tax Incentives as a Creative Industries Policy Instrument. In: Tax Incentives for the Creative Industries. Springer, Singapore, 2017. p. 33-64.
OECD (2010) Tax expenditures in OECD countries. OECD, Paris.
OECD. (2018). OECD Summer Academy on Cultural and Creative Industries and Local Development.
UNCTAD (2018) Creative Economy Outlook: Trends in international trade in creative industries.